ZANGAS À ANTIGA
ARTICLES • 20-05-2015
ZANGAS À ANTIGA

Ria de Aveiro, PORTUGAL


 
Haverá coisa que mais nos sorva o alento que um conflito?
Zangas, chatices, desavenças, amuos, quezílias, arrelias,... das que duram horas às que duram anos.
E que dizer das que duram vidas?
 
Uma vez quando tinha uns 10 anos a minha irmã fez queixa de mim e eu fui castigado injustamente. De tão zangado, jurei para mim mesmo que nunca mais lhe falaria. Nunca mais! Na mais intensa concentração de quem não quer vacilar, aguentei duas horas.
 
É assim em criança. Mas os adultos treinaram já muito, aguentam bem mais. Parece-lhes mais alta a aposta em jogo. Cresceu entretanto o ego, precisando dessas mordomias. Dessas provas de que cuidamos da nossa identidade. De como levamos a sério quando diz menos de nós aquilo que alguém faz.
 
De facto há discussões que não se podem ter. Porque a irritação não cabe, é mais que meras palavras, insuficientes para gritarem alto que chegue. É preciso dar-lhe ênfase, e isso requer silêncio, longo que é o que melhor fala. Rica escolha de eloquência essa de nos calarmos para colmatar a ineficaz retórica das palavras. Rico amplificador, qual megafone de estádio, essa mudez que toma dias de vida, anos de sorrisos, e se nos entala num nó de garganta a regrar a liberdade da alma. Às vezes para sempre, muitas para nunca mais, num entupimento desenrolhado por fim em soluços de enterro, acabado de vez o perigo, podem saldar-se as contas, que eu sempre guardava algum do lado de cá, pelo sim pelo não.
 
De que é feita afinal essa prisão, essa paliçada, essa cilada, tóxica, que nos grita "caluda!", e nos mantém a distância segura, quando é tão da natureza humana tocar? Onde fica essa fonte de tão tolas regras? Primos, colegas, tios, vizinhos, maridos, irmãos, amigos, pais, filhas, que fazem tantos tão longe uns dos outros, quando deviam estar tão perto, porque afinal é um pouco de si que afastam?
 
Às vezes, não se podendo desenrolar mais cedo, trava-se a língua, mesmo querendo dizer coisas, de tantos anos que passaram. Antes de tocar à porta, pensa-se: já cá não vinha há tanto tempo! E o outro, abrindo, igual de tão mudo, calando um "nunca pensei voltar a ver-te". Agora a emoção é demasiada e não sai nada. É melhor sentar-me que zonzo estou. Que amargura me lembras. Que se diz depois de todo este tempo? Foi mesmo tanto... que tolice... como é gentil a tua face, e como é inocente o medo de não nos querermos magoar. Mas bem idiota que é também. E por outro lado que forte é a dor quando alguém tão fiável nos fere, mesmo se não foi bem assim, porque as histórias da nossa cabeça são tão poucas vezes as da cabeça do outro, raramente batendo o feito com o intentado. Toda a gente sabe disso, mas muitos não levam a sério o que sabem...
 
Zangaram-se. Não se falam. É pena. Eram tão amigos!
E corre água nos moinhos, segue caminho a vida, sem mais. Ainda que seja uma vida com bem menos...
 
 
Gonçalo Gil Mata
 
 
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